Filoxera (pulgão da vinha) e o apocalipse do vinho na Europa

Em 1863, uma vinha de Avignon secou, vítima de um parasita importado da América. Nas décadas seguintes, a praga da filoxera arrasaria quase todos os vinhedos da Europa.

Entre 1860 e 1870, durante os últimos anos do Segundo Império, os campos de França eram especialmente bonitos. A vista perdia-se até ao infinito nas grandes extensões de vinhas salpicadas de prósperas propriedades de viticultores, fossem eles camponeses com uma pequena parcela ou grandes latifundiários. Tinha acabado de ser vencida uma importante infestação de um parasita chamado oídio e a produção seguia a todo o vapor. Os novos traçados ferroviários tinham reduzido em quatro quintos o custo dos transportes e o aumento dos salários nos centros urbanos aumentara o poder de compra de milhões de pessoas. Como resultado, o vinho tornara-se um produto muito comum até mesmo à mesa das famílias que não moravam em zonas vinícolas, como a região parisiense e o Norte do país. Era realmente uma idade do ouro.

A extensão das vinhas francesas atingia 2,5 milhões de hectares, os rendimentos multiplicavam-se empurrados também pela subida dos preços e pela descida dos custos, ao mesmo tempo que aumentava o valor da terra. Assistia-se até a um (limitado) regresso ao campo dos trabalhadores provenientes das fábricas. Naqueles anos, a Borgonha e a região de Bordéus eram sinónimo de grandes quintas, os châteaux que dominaram o panorama mundial dos vinhos.

A Filoxera: a praga

Portugal foi o segundo país europeu invadido pela filoxera. Na década de 1860, a doença foi detectada no concelho de Sabrosa, tendo-se espalhado depois para o Douro. Segundo os especialistas, atacou essa região até 1880, alastrando depois ao resto do país.

Em 1884-85, a produção vinícola no Douro era menos de metade inferior aos registos anteriores à praga.

Vários especialistas estrangeiros e nacionais estudaram possíveis respostas contra a praga, mas com resultados debéis. Um desses trabalhos foi o do francês Édouard Loarer, que fizera tentativas de travar o progresso da doença, mas não foi bem-sucedido. A sua obra chegou a Portugal em 1873.

Um exemplo disto é a quinta Château Lafite, que em 1868 foi comprada pela família Rothschild por mais de quatro milhões de francos e que, em 1821, valia um milhão. No meio de todo este entusiasmo, passou despercebida uma vinha que em 1863 secara e morrera em Pujat, perto de Avignon, no Sul de França.

Filoxera, o parasita americano

O fenómeno das cepas que secavam misteriosamente continuou limitado a pequenos focos durante alguns anos. Em 1868, o professor Jules Émile Planchon chegou a uma conclusão nefasta: tratava-se de um parasita então desconhecido na Europa, a filoxera. Este pequeno insecto que se alimenta das raízes e das folhas da vide tinha duas particularidades que o distinguiam de outras pragas: espalhava-se rapidamente e não infectava apenas a planta, matava-a. Era o início da catástrofe que, ao longo de meio século, destruiria a quase totalidade das vinhas europeias.

A filoxera não existia no continente europeu, mas, em meados do século XIX, importaram-se algumas vinhas americanas que se tinham mostrado resistentes à infecção do oídio que ameaçava algumas culturas. O parasita desembarcou em França juntamente com essas cepas e encontrou terreno fértil porque as vinhas europeias não tinham qualquer resistência genética à filoxera. França foi o primeiro país afectado e, por isso, o primeiro a pagar as consequências. Algumas propriedades foram literalmente varridas pelo pequeno insecto.

No território do famoso Château-neuf-du-Pap , um proprietário que costumava obter 30 mil hectolitros, só produziu três, informava em 1871 o agrónomo Carlo Tonini, que na altura pensava que o parasita ainda não transpusera as fronteiras de França..

Em 1876, Émile Duclaux destacava o progresso da doença num relatório para o governo francês: “A oeste do Isère, a praga avançou tão longe quanto lhe foi possível, já não há vinhas […]. No departamento do Hérault, toda a região foi invadida, as vinhas desapareceram.”

Em poucos anos, o mundo vitivinícola passou da euforia à inquietude e depois ao desespero. Neste panorama desolador, os relatórios da época tentavam seguir a infecção e os seus danos, mas parecem confusos e incertos. Entretanto, os pequenos proprietários que tinham vislumbrado a possibilidade de emancipação económica viram desaparecer quer os ganhos quer o valor das terras que possuíam. Muitos foram obrigados a vender as propriedades ou a reconverterem-se, cultivando cereais e legumes para rapidamente poderem fazer frente às dívidas, desmantelando assim o património vinícola que tinham construído ao longo de décadas. No departamento do Gard, onde se detectara a filoxera pela primeira vez, em 1871 ainda se contabilizavam 88 mil hectares de vinha, mas em 1879 restavam apenas 15 mil.

Deste modo, no romance Le Moulin de Frau, de 1880, Hélie Nogaret, um moleiro de Montignac, narra a situação, impotente face à agressão das suas vinhas: “No primeiro ano, vi a forma como uma mancha se espalhava. Era ela! – essa filoxera miserável. No segundo ano, não produzimos mais do que um quarto do vinho que esperávamos e nem sequer tinha qualidade, já que as vinhas doentes não conseguiam amadurecer os bagos das uvas. No terceiro ano, nada. As fileiras secas enredavam-se nos pés e caíam no chão.”

A peste que arrasou a Europa

Em poucos anos, toda a Europa foi invadida pela praga. A difusão partiu de vários focos, sempre ligados à introdução de cepas americanas infectadas com filoxera. Na Áustria, registou-se a partir de 1868; em Portugal, em 1871 e, na Alemanha, a partir de 1874. De França, a praga passou para Itália em 1879, no mesmo ano em que se registaram os primeiros casos na Catalunha, embora o primeiro surto em Espanha date de 1878. Levada pelo vento, a propagação da “peste do vinho” durou décadas. As regiões não afectadas esperavam temerosas a chegada da praga.

Venda de cepas obtidas

Nas primeiras décadas do século XX, havia poucas dezenas de vinhas sobreviventes em toda a Europa. Eram as chamadas“pé-franco”, cepas centenárias, testemunhas de um património genético já desaparecido. Sobreviviam graças a características especiais, como era o caso dos terrenos arenosos e vulcânicos ou em climas especialmente frios, onde a filoxera não conseguia prosperar. Tentaram-se inúmeros tratamentos, desde sulfureto de carbono injectado no terreno ou a imersão das cepas para afogar os insectos até ao uso de uma mistura de cal e areia, mas tudo foi inútil. A guerra contra a filoxera estava perdida e o extermínio era quase total. Foi então que se tomou a única opção viável: começar a partir do zero.

Paisagem nova

Todas as vinhas atacadas foram replantadas, enxertando as cepas em raízes americanas, geneticamente imunes à filoxera. Deste modo, iniciou-se um estudo coordenado para seleccionar a variedade transoceânica e adaptá-la às plantas originais e aos terrenos calcários. Durante cinquenta anos, o campo europeu foi uma obra onde se redesenhou de forma radical o cultivo das vinhas e o próprio sabor do vinho. Os principais beneficiários deste processo foram os grandes proprietários que podiam dar-se ao luxo de consultar agrónomos e de usar as tecnologias disponíveis, enquanto os mais pequenos, para resistirem a anos com falta de rendimentos, tiveram de se endividar ou vender as terras. Muitos camponeses e trabalhadores à jorna viram-se reduzidos à miséria em poucos anos e obrigados a abandonar os campos, sendo depois absorvidos pelas fábricas. No final da Grande Guerra, uma cultura vitícola milenar, baseada no conhecimento directo do terreno e na selecção de cepas, tinha sido completamente eliminada. Dessa catástrofe, renascia a moderna viticultura.

FONTE: National Geographic

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